domingo, 17 de junho de 2012


1o Lugar: CONTO
Andrea Lugo Nectoux
Porto Alegre/RS

AO PRINCÍPIO...

Em homenagem a Ramón Angel Lugo Ramirez - sempre presente.

O relógio à minha frente indica 4 horas...
Será que a minha cara está muito ruim? Devo estar com mau hálito, isso com certeza... Como se fica complacente com os moribundos... como nos fazem perder completamente a dignidade... O que tem a ver os meus sinais vitais com minha barba? Por que se negam a fazê-Ia? Esperam que eu esteja morto para a funerária, enfim, se ocupar dessa tarefa? Essas normas insensíveis da UTI... isso sim é que me detona! Nos manuseiam como objeto. Para esses caras de branco só o que interessa são os sinais vitais... E os sinais morais da gente, como é que ficam?
que nem um pente eles me dão, vou tratar de ajeitar meus cabelos com os dedos mesmo... Ah, e tapar esses furos, esses hematomas... Ninguém precisa saber o que foram as últimas 24 horas. De mártir basta um... por vez... Todos vão ter a sua hora... Por enquanto, não quero impregnar de morte a vida dos meus queridos... na medida do possível, é claro...
Deus, como é difícil... fingir tranquilidade quando, na verdade, estou petrificado...
A qualquer momento eles vão começar a entrar, com seus olhos já marejados...
-Oi, Pai! Como está se sentindo hoje?
-Olha... estou sentindo que dei uma melhorada...
Pura mentira! Hoje amanheci pior do que nunca... e todos os dias têm seguido essa tendência... Mas como dizer isso àqueles olhinhos?
-Pai, eu tenho certeza que tu vais ficar bom. Logo, logo tu vais voltar para casa...
Nossa... O que vai ser deles todos quando eu terminar o que vim fazer aqui?
A enfermeira avisa o fim do horário de visitas. Ao lado, uma mulher interrompe uma narrativa histérica com um choro inincontível...
Um a um eles entraram, receberam uma dosezinha de alento, e se foram... Ou será que eles também estariam tentando me alentar, me convencer, e secretamente também escondem suas-feridas antes de entrarem aqui?
Meus queridos, eu posso ver o terror no fundo dos olhos de vocês, o medo, a predição do futuro, a maldição da nossa finitude, a marca angustiada da nossa humanidade refletida nessas lágrimas represadas, nos olhos de, vocês... Eu sei que vocês sabem, vocês sabem que eu sei... porém é atroz demais para ser verbalizado...
Meus queridos, por favor, não compartilhem desse horror comigo...
Agora, mais um dia até a próxima... agora, menos 1 dia...  Lá vêm eles com suas bandejas reluzentes... Será para mim? Agora só eu e meus pensamentos, por horas, e horas, e horas...
Tanto tempo para pensar... Para um bom cristão essa deve ser a melhor forma de morrer... Pode-se retomar toda a trajetória particular mentalmente e resignar-se com a sensação de dever cumprido... como se tivesse atingido a sua meta.
Quanto a mim, fui bom pai, bom esposo, bom cidadão, funcionário honesto, ecologicamente correto... porém, isso não me tranquiliza nesse momento derradeiro; ao contrário, me perturba...
Quanto disso tudo, no que empenhei minha vida e que acabou me definindo, foi o que realmente eu queria? O que eu sou? Sinto que fui refém de uma sedução pequeno burguesa... e finalmente descubro a falácia- estabilidade não é paz! Paz é estar de acordo com o próprio íntimo, mesmo que esse íntimo seja turbulento... Insight tardio demais... O mais lastimável é me dar conta disso logo agora... Eu devia ter tratado mais criativamente minha vida, feito dela uma obra de arte, e não ter sido tão passivo aos acontecimentos... não deveria ter buscado tanto a coerência... Tornei-me monólito... Não deveria ter ferido de morte a multiplicidade em mim...
Que horror o gosto residual desse remédio...
A cada hora, a cada dia, a luta para continuar vivo fica mais difícil. Apesar disso, essa chama vital continua acesa! Não consigo pensar em morrer de uma vez, para acabar com essa agonia. Há algo dentro de mim que não se entrega... Sinto-me inacabado demais para estar morrendo... O que fazer com essa vontade de vida? Sinto que se tivesse mais uma chance, não a desperdiçaria, e finalmente realizaria o que sempre ficou somente numa vaga promessa.
Ao meu lado um mau presságio... Parada cardíaca... gemidos, grunhidos, intervenções brutais... e ele se foi...O que restou foi só um corpo abandonado, até patético, como um boneco abandonado pelo ventríloquo depois do espetáculo.
Agora sinto que sou a bola da vez...
Quero berrar, espernear no chão, como fazem meus netos, como faziam meus filhos, como fazia eu quando era menino... eu, menino... Eu ainda sou aquele menino, eu ainda preciso daquele conforto que só o colo da minha mãe dava...
Hoje o colo da mamãe foi substituído por sedativos, bem eficazmente, diga-se de passagem... morfina... Eu devia ter conhecido isso antes... parece ser a parte boa disso tudo...
No meu cavalo branco, galopo pelo campo... Meu corpo pequeno e magro... meus cabelos longos chicoteando meus ombros, nus... livre, feliz! O mundo é meu! Sair sem rumo sobre o meu animal... mais selvagem que ele... é o que mais gosto... "Ramón!!" grita minha mãe ao longe... Eu penso em voltar, mas o corpo é mais rápido e comanda... Sou tomado pelo êxtase de uma liberdade profunda, que é tão fundamental e poderosa, que sigo meu coração sem rédeas para onde for...
Enfim, em paz comigo mesmo.

2o Lugar: CONTO
Roberto Rodrigues de Menezes
Florianópolis/SC

TRAIÇÃO PÓSTUMA

Ele acordou, mas de uma maneira diferente. Estava leve, fluido, deslizante. Sentia-se incorpóreo. Foi quando lembrou que morrera já fazia algum tempo. Sentado na lápide, contemplava a estrela com a data em que nascera e a cruz com o dia da morte. Aleixo finado não chegara aos cinquenta.
Vê alguns novos amigos a passear pelos corredores irregulares do campo santo, mas não consegue com eles falar, muito menos olhar nos olhos. Parece que todos independem de todos. Juntos e terrivelmente solitários. Velhos, crianças, adultos, jovens. É fim de tarde e as portas da nova e tétrica morada já estão cerradas pela pressa dos funcionários. Era agora possível flanar, voejar, levitar, sair um pouco do patético abrigo. Horário bem próprio para umas esticadas, tentar ainda sorver um resto de lembrança. Alguns passam de olhos fechados, outros divagam taciturnos. Não há sã alegria nem tristeza pungente. Uma solene e soturna indiferença.
Arrumara em vida um casamento infeliz, sem filhos, sem perspectiva. A esposa nunca fizera muita questão de esconder a indiferença e o descaso. E decorria daí uma vantagem magnífica que a morte agora lhe propiciava. Estava livre, livre, sem ninguém mais a quem prestar contas, Casara depois dos quarenta, ela aos vinte e dois. Ele, Aleixo escolado, experiente das coisas da vida; ela Teresa neófita, mas desejosa de tudo aprender o quanto antes.
Quando ia pegá-Ia na faculdade, invariavelmente a via com rapazes da idade dela, do desejo dela. E a relação logo congelara, sem papo cabeça que aguentasse. Achava ele, ao contrário, que os casamentos do mundo viraram a desandar quando apareceu o maldito papo cabeça. Quando um dos cônjuges afirma "ser necessário discutir a relação", pode-se já preparar os papéis do divórcio.
Mas, apesar de livre, o Aleixo etéreo ainda quer rever a casa, a mulher, ou melhor, a viuva, Teresa lampeira bem fresca e posuda, para alegria dos homens. Procura dirigir-se de novo ao lar, que não foi doce nem lar. Afinal, o caminho não é longo, ele o conhece e não mais se cansa. Transpõe de um modo novo e volátil as grades de ferro. As pessoas na rua passam indiferentes, conhecidas até, que tenta cumprimentar, sem conseguir.
Agora não sente frio nem calor. Vê que as folhas se mexem na claridade lúgubre do crepúsculo, porém não sente o vento. E chega afinal à casa fechada, as luzes acesas lá dentro. Num ato instintivo bate à porta e não escuta qualquer som. Quando dá por si, sem saber como, já se encontra dentro. Está na cozinha, na velha cozinha onde se esmerava em lhe fazer os mais doces e amorosos quitutes, pois ela nunca quisera ser de fomo e fogão. A torneira da pia ainda pinga, um irritante e monótono estrago nunca
consertado.
Sente-se parte do universo. Não domina por certo a nova força, mas sem se dar conta vai até o armário da cozinha e abre exatamente aquela porta, exatamente aquela. Não abriu com a mão, pois isso não mais funciona. Abriu de outro modo, fantasmagórico, irreal. Sabia que precisava abrir bem ali, sem tentativa nem erro. E deu com um vidrinho de pó branco pela metade. Sem rótulo, sem indicação. No entanto, ele sabia com certeza que era arsênico, pois seu novo estado lhe propiciava esta verdade. E compreendeu finalmente os estranhos suores e tremores, entremeados de dor, que sentia depois de cada refeição, de cada refresco.
Teresa maldita era a responsável. Estava certo disso também, não se fazia necessário investigar. Mas, a quem recorrer? Haveria alguma polícia no irreal, um judiciário no éter, nesta estranha dimensão que agora habitava?
Fora ela o caminho para a morte dolorida e desejada, tamanho o sofrimento. Ah, por todos os esconjuros, um dia ela viria até ele. Esperaria. Talvez até lá, já tivesse resolvido o que fazer, quiçá matá-Ia de novo.
Ouve ruídos na sala. Maravilha-se com o que escuta, pois até ali o silêncio parecia eterno. Desliza na porta e a vê, Teresa pérfida, aos beijos no sofá de sempre com um desconhecido de corpo sarado. O mesmo sofá que o abrigava quando ela decidia dormir sozinha no quarto. Beijos de língua, apaixonados, plenos de entrega.
Aleixo incorpóreo desespera. Tenta chamar a atenção, procura pegar algum objeto.
Impossível. E continuam eles o já não adúltero beijo. Levantam-se e, agarrados, lascivos, caminham para o quarto com passos trôpegos, desencontrados.
Teresa mofina não sentiu luto nem saudade.
Volta à calma e compreende afinal que a cena é antiga. Fora enganado em vida, como se via trai do na morte. Não vai ao quarto. Não quer ver o que já sabe que deve acontecer.
Retoma ao seu ambiente, pois nada há que fazer. Tentará em vão esquecer os senões da vida abjeta que vivera.
Passa sem problemas pelo portão cerrado de seu novo endereço. Espera dominar a sua fluidez para se vingar da Teresa assassina, nem que espere a eternidade, que agora para ele não mais conta. Está vazio de tempo e espaço.
Aleixo intangível vai se perdendo junto à lápide, sem lamentação. Mas percebe com mórbida e estranha alegria que continua sentindo ódio. E retoma ao nada, logo abaixo da superfície.

3o Lugar: CONTO
Gilberto Garcia da Silva
Praia Grande/SP

A MORTE DO POETA

Aos oito anos escreveu um poema.
Meu cavalo se chama Alfredo.
Ele tem asas.
Quando vôo nele não tenho medo.
Quase morreu de orgulho ao contemplar as três linhas. Aquilo não existia; ele havia criado.
Seria para sempre a coisa que mais lhe pertenceria no mundo todo. Uma extensão de si mesmo, a maneira menos precária de tocar a beleza e a eternidade.
Correu até a cozinha. A mãe cuidava da louça e não quis secar as mãos. Abaixou o rosto, franziu a testa e os lábios.
- Você não tem cavalo ela - disse, depois de decifrar cada uma das letras.
Continuou segurando a folha acima da cabeça, à espera de outro comentário.
- Vai limpar o quintal - ela mandou já de volta aos pratos e talheres.
Recolheu o poema. Era manhã de domingo e fazia sol. Chutou pedras e tampinhas de garrafa, pendurou-se num galho de árvore. Decidiu caminhar até a praça. Durante o trajeto foi construindo prédios de algodão colorido e mudando nuvens de lugar.
O pai tomava cerveja com os amigos. Mostrou-lhe a obra – fruto - furto da sua imaginação.
Enquanto ele lia, os amigos despentearam o seu cabelo. Perguntaram quantas meninas tinha namorado e apertaram o seu braço para saber se estava musculoso. Riu sem graça e disse palavras insignificantes. O pai devolveu a folha, ao final de uma luta mais ou menos breve.
- Cavalo não voa - retomou a conversa.
Virou as costas.
- O quintal já está limpo? - o grito alcançou-o do outro lado da rua.
Respondeu com um levantar de ombros. Guardou o poema no bolso da bermuda e foi embora, olhos baixos, passos rápidos. Juntou pedaços de papel, pontas de cigarro, insetos mortos, miudezas perdidas e abandonadas. Fez uma fogueira com o lixo da semana. Comeu maionese e carne assada, pudim de sobremesa. Viu televisão e dormiu.
No dia seguinte a mãe lavou a roupa da família enquanto, perto dali, ele decorava nomes e datas.

1o Lugar: CRÔNICA:
Tatiana Alves Soares Caldas
Rio de Janeiro/RJ

TURBULÊNCIA

A solidão das misérias humanas vociferava no horizonte, anunciando-se qual temida tempestade. De narinas infladas, assustava até aqueles a ela acostumados e, por que não, afeiçoados.
Atraiçoara-os, é verdade. Iludira-os, deixando que se pensassem a salvo, para irromper, absoluta, quando já a tinham por perdida.
A solidão nunca morre. Nascemos e morremos sós, e camuflar ISSO apenas alimenta o velho embate do ser consigo mesmo.
Buscar a verdade, talvez o único caminho. A única certeza. É em seu desconhecimento que reside a causa de todos os infortúnios. Como Pandora, que trazia em sua caixa de carne a pior das angústias, a esperança, lenitivo que prolongava a tortura. Depois contam a história da caixa, quando desde sempre a humanidade sabe onde se esconde a esperança humana: lá, onde o homem entra e de onde ele sai, nudez
atemporal. O turbilhão que o suga reacende o velho desejo edipiano, oculto sob o véu do erotismo. Talvez por isso Parcas, Fúrias e Moira sejam femininas. Fonte e fim.
Remédio e veneno.
A solidão vociferava no horizonte, aguardando o momento do bote. E o homem, olhando-a nos olhos, sorvia, suplicante, seus últimos instantes de paz.

2o Lugar: CRÔNICA:
Antônio Vilela Pereira
Jataí/GO
CRÔNICA DO ZÉ NINGUÉM...
Eu venho da metade do século passado, um pouquinho antes, venho do final da Segunda Guerra Mundial, do país acordando em manhã ensolarada, preparando-se para grandes transformações e mudança de mentalidade.
Eu venho do êxodo rural, das populações do cerrado em mobilidade, mudando-se pras cidades mais próximas ou fundando vilas e povoações, onde pudessem construir pequenos grupos escolares, pros seus filhos estudarem.
Eu venho da aurora, que iluminou a escuridão da ignorância, que desnudou uma nova civilização, que ocupou o vazio das horas com muito trabalho, nos cerrados goianos.
Eu venho do impossível, do inacreditável, do quase nada, do clarão do pensamento sonhador, de que é preciso querer para depois poder.
Eu venho das quatro estações do ano. Das flores da primavera, que geram os frutos do outono. Do calor do verão, que transpira no aguaceiro do inverno.
Eu venho de uma terra encantada, que tem frutos saborosos, que tem riachos murmurantes, que tem pássaros cantores, que tem bichos nativos, que tem vida na plenitude, que tem amor nos detalhes.
Eu venho de um tempo esquecido, que acreditou na esperança de uma existência melhor para todos.
Eu venho como rebento dos pobres e vim para escrever o meu nome no mármore ou no granito, com placa de bronze.
Leitor ou leitora, não se assuste. Eu me chamo "Zé Ninguém". Sou apenas um "Zé", que no começo de tudo, não queria tanto... Afinal, queria apenas ser alguém, cansado de ser ninguém...


3o Lugar: CRÔNICA:
Isabel Cristina Silva Vargas
Pelotas/RS
ATO DE SOBREVIVÊNCIA
Para falar sobre a importância do ato de escrever, tenho que esquecer o que já escrevi sobre o tema para não me repetir. Passo uma borracha em meu interior. Não quero me deixar influenciar pelo já dito.
Hoje não sou mais a mesma de ontem- sou aquela e mais outras tantas - portanto, os motivos que me impeliam outrora, necessariamente, não são os mesmos de hoje. Fecho os olhos em uma profunda reflexão. Desde quando escrevo? Qual minha trajetória de escrita? Primeiro escrevia para mim nos diários que mantinha sigilosamente na adolescência.
Quando as pessoas se enamoram tentam eternizar estes momentos colocando-os no papel. Geralmente não passam disto. Amontoados de papel entupidos de sentimento que são rasgados logo ali, num momento de raiva. Os meus permanecem na caixa até hoje. Não sei se ao abri-Ia reconhecerei aquela que os escreveu.
Quando meus filhos nasceram o encantamento era tal que escrevi em seus álbuns para que guardassem os meus sentimentos até depois de minha partida. Desejo de eternidade, motivo escondido de quem escreve. Medo da finitude. Idéia internalizada de que existe ordem para tudo.
Em um momento, encantada com a vida, na tranqüilidade da maturidade comecei a escrever poesias, sem me atrever a mostrar para alguém.
Enveredei para outro tipo de escrita menos emocional. Sobre questões da área em que atuava. Naquela era preciso manter todo um conjunto de regras, que nos limitam a esta postura. Controle!Preservação do meu eu. Era o profissional orientando a comunidade.
No decorrer da vida, sucessivos acontecimentos interferem em nossos desejos, na nossa conduta. Mudamos. Para melhor ou pior é um juízo muito subjetivo.
O que antes temerosos guardávamos passamos a jogar ao vento, e nesse ato de voar encontramos algumas pessoas que se identificam conosco, outros que se descobrem. No decorrer desse processo vamos nos livrando de certos pesos, por uma necessidade quase incontrolável.
Afrouxamos as cangas que nos mantém prisioneiros de nossos medos internos de rejeição. Feito isso,. depois é como brincar. Lúdico, prazeroso. É como se jogássemos aviões de papel para o alto e eles retornassem pois mais pessoas começam a se envolver na brincadeira. Já não brincamos a sós. A troca estimula. A necessidade se instaura, e os motivos que nos impediam de soltar aviões, pipas ou penas ao vento já não mais importam. Quanto mais nos revelamos, mais leves ficamos. Dividimos dúvidas, temores, inquietações, pequenas e grandes, alegrias e conquistas. Contraditório e paradoxal, mas ao nos despojarmos de algo, mais espaços interiores criamos.
Então nosso foco muda. Saímos de nós, passamos a ver o que nos rodeia com um olhar mais sensível. Começamos a colocar o outro em nossos textos. Se é literatura, catarse, poesia não saberia dizer especificando cada época. Talvez de tudo um pouco para ser mais generosa comigo.
Reconheço que era algo que fazia por puro prazer, além de ser leve o conteúdo
Era como liberar energia positiva. Retorno emocional instantâneo.
Até que um dia a vida explodiu para mim. Os cacos se espalharam e através da escrita tentei juntar o que sobrou. O formato mudou. Tudo mudou.
Se refletirmos, perceberemos que viver é estar em constante mutação.
Quando as mudanças são sutis quase não as percebemos. Vivemos com a falsa ilusão de que ainda somos os mesmos que éramos, sem perceber que já pereceu a criança, o adolescente e algumas vezes o adulto que existiam, restando o espectro de todos. Assim como acreditamos em muitas outras coisas, como que existe ordem cronológica para nascer viver e morrer e quando essa ordem se inverte, morremos também.Senão visível, de forma metafórica .
Mais uma vez é através desse ato desesperado de escrever que tentamos expurgar a dor. É uma necessidade imperiosa para sobreviver, ocupar a mente, externar sentimentos, sonhar, reorganizar as emoções assim como a criança se identifica e reorganiza as emoções nos contos de fadas, coloco para fora os monstros dos sonhos de terror para ver se encontro nesses despojos, as fadas e os anjos que povoaram meus sonhos e minha vida. Tento encontrar caminhos reais e imaginários.
Escrevo como um último recurso de criar novos territórios onde possa deletar fantasmas, desmistificar crenças, perpetuar a vida, o amor e manter viva em mim as lembranças felizes de seres maravilhosos que deram sentido ao meu viver..
Em suma, é através da escrita que me oportunizo um novo sentido.
Ato declaratório de esperança. Embate direto com a morte. A real e a metafórica.

1Lugar: POEMA:
(EMPATE)


Lígia Antunes Leivas
Pelotas/RS

MISTÉRIOS

Breve a voz
e tantos são os caminhos.
Despedir-se é abismo
entre os que se querem... e o dia se prolonga
ao desconhecer-se em si mesmo.
Dissipa-se o pensamento.
O ar respira misturas tantas
e a chama repousa santa.
A canção escolhida vai longe
e o amor não acenderá mais
seus fogos jubilosos.

Se a vida tanta dor nos causa,
a morte nos causa horror
mas já não há mais sofrimento.

A hora sentencia a verdade.
Nada mais se pode ser...
Toda partida é tempo de mistérios.
++++++++++++++++++++++++++++++++++++++
Maria do Carmo de Lima Bomfim
Rio de Janeiro/RJ

ANGÚSTIA

Que dor é esta,
que me torna prisioneira
de mim mesma?
Que dor é esta,
que me faz andar a esmo?
Paredes me encarceram,
correntes me impedem de amar.
Como fazer poesia,
se vivo refém
de mágoas passadas,
fantasmas aterradores
que escurecem os dias,
atormentando as tardes?
Só, à noite,
espero por este momento
para dizer o que sinto
e me libertar deste labirinto.