domingo, 17 de junho de 2012


2o Lugar: CONTO
Roberto Rodrigues de Menezes
Florianópolis/SC

TRAIÇÃO PÓSTUMA

Ele acordou, mas de uma maneira diferente. Estava leve, fluido, deslizante. Sentia-se incorpóreo. Foi quando lembrou que morrera já fazia algum tempo. Sentado na lápide, contemplava a estrela com a data em que nascera e a cruz com o dia da morte. Aleixo finado não chegara aos cinquenta.
Vê alguns novos amigos a passear pelos corredores irregulares do campo santo, mas não consegue com eles falar, muito menos olhar nos olhos. Parece que todos independem de todos. Juntos e terrivelmente solitários. Velhos, crianças, adultos, jovens. É fim de tarde e as portas da nova e tétrica morada já estão cerradas pela pressa dos funcionários. Era agora possível flanar, voejar, levitar, sair um pouco do patético abrigo. Horário bem próprio para umas esticadas, tentar ainda sorver um resto de lembrança. Alguns passam de olhos fechados, outros divagam taciturnos. Não há sã alegria nem tristeza pungente. Uma solene e soturna indiferença.
Arrumara em vida um casamento infeliz, sem filhos, sem perspectiva. A esposa nunca fizera muita questão de esconder a indiferença e o descaso. E decorria daí uma vantagem magnífica que a morte agora lhe propiciava. Estava livre, livre, sem ninguém mais a quem prestar contas, Casara depois dos quarenta, ela aos vinte e dois. Ele, Aleixo escolado, experiente das coisas da vida; ela Teresa neófita, mas desejosa de tudo aprender o quanto antes.
Quando ia pegá-Ia na faculdade, invariavelmente a via com rapazes da idade dela, do desejo dela. E a relação logo congelara, sem papo cabeça que aguentasse. Achava ele, ao contrário, que os casamentos do mundo viraram a desandar quando apareceu o maldito papo cabeça. Quando um dos cônjuges afirma "ser necessário discutir a relação", pode-se já preparar os papéis do divórcio.
Mas, apesar de livre, o Aleixo etéreo ainda quer rever a casa, a mulher, ou melhor, a viuva, Teresa lampeira bem fresca e posuda, para alegria dos homens. Procura dirigir-se de novo ao lar, que não foi doce nem lar. Afinal, o caminho não é longo, ele o conhece e não mais se cansa. Transpõe de um modo novo e volátil as grades de ferro. As pessoas na rua passam indiferentes, conhecidas até, que tenta cumprimentar, sem conseguir.
Agora não sente frio nem calor. Vê que as folhas se mexem na claridade lúgubre do crepúsculo, porém não sente o vento. E chega afinal à casa fechada, as luzes acesas lá dentro. Num ato instintivo bate à porta e não escuta qualquer som. Quando dá por si, sem saber como, já se encontra dentro. Está na cozinha, na velha cozinha onde se esmerava em lhe fazer os mais doces e amorosos quitutes, pois ela nunca quisera ser de fomo e fogão. A torneira da pia ainda pinga, um irritante e monótono estrago nunca
consertado.
Sente-se parte do universo. Não domina por certo a nova força, mas sem se dar conta vai até o armário da cozinha e abre exatamente aquela porta, exatamente aquela. Não abriu com a mão, pois isso não mais funciona. Abriu de outro modo, fantasmagórico, irreal. Sabia que precisava abrir bem ali, sem tentativa nem erro. E deu com um vidrinho de pó branco pela metade. Sem rótulo, sem indicação. No entanto, ele sabia com certeza que era arsênico, pois seu novo estado lhe propiciava esta verdade. E compreendeu finalmente os estranhos suores e tremores, entremeados de dor, que sentia depois de cada refeição, de cada refresco.
Teresa maldita era a responsável. Estava certo disso também, não se fazia necessário investigar. Mas, a quem recorrer? Haveria alguma polícia no irreal, um judiciário no éter, nesta estranha dimensão que agora habitava?
Fora ela o caminho para a morte dolorida e desejada, tamanho o sofrimento. Ah, por todos os esconjuros, um dia ela viria até ele. Esperaria. Talvez até lá, já tivesse resolvido o que fazer, quiçá matá-Ia de novo.
Ouve ruídos na sala. Maravilha-se com o que escuta, pois até ali o silêncio parecia eterno. Desliza na porta e a vê, Teresa pérfida, aos beijos no sofá de sempre com um desconhecido de corpo sarado. O mesmo sofá que o abrigava quando ela decidia dormir sozinha no quarto. Beijos de língua, apaixonados, plenos de entrega.
Aleixo incorpóreo desespera. Tenta chamar a atenção, procura pegar algum objeto.
Impossível. E continuam eles o já não adúltero beijo. Levantam-se e, agarrados, lascivos, caminham para o quarto com passos trôpegos, desencontrados.
Teresa mofina não sentiu luto nem saudade.
Volta à calma e compreende afinal que a cena é antiga. Fora enganado em vida, como se via trai do na morte. Não vai ao quarto. Não quer ver o que já sabe que deve acontecer.
Retoma ao seu ambiente, pois nada há que fazer. Tentará em vão esquecer os senões da vida abjeta que vivera.
Passa sem problemas pelo portão cerrado de seu novo endereço. Espera dominar a sua fluidez para se vingar da Teresa assassina, nem que espere a eternidade, que agora para ele não mais conta. Está vazio de tempo e espaço.
Aleixo intangível vai se perdendo junto à lápide, sem lamentação. Mas percebe com mórbida e estranha alegria que continua sentindo ódio. E retoma ao nada, logo abaixo da superfície.

Nenhum comentário:

Postar um comentário