2o Lugar: CONTO
Roberto
Rodrigues de Menezes
Florianópolis/SC
TRAIÇÃO
PÓSTUMA
Ele
acordou, mas de uma maneira diferente. Estava leve, fluido, deslizante. Sentia-se
incorpóreo. Foi quando lembrou que morrera
já fazia algum tempo. Sentado na lápide, contemplava
a estrela com a data em que nascera e a cruz com o dia da morte. Aleixo finado
não chegara aos cinquenta.
Vê alguns
novos amigos a passear pelos corredores irregulares do campo santo, mas não
consegue com eles falar, muito menos olhar nos olhos. Parece que todos
independem de todos. Juntos e terrivelmente solitários. Velhos, crianças,
adultos, jovens. É fim de tarde e as portas da nova e tétrica morada já estão
cerradas pela pressa dos funcionários. Era
agora possível flanar, voejar, levitar, sair um pouco do patético abrigo.
Horário bem próprio para umas esticadas, tentar ainda sorver um resto de
lembrança. Alguns passam de olhos fechados, outros divagam taciturnos. Não há sã alegria nem
tristeza pungente. Uma solene e soturna indiferença.
Arrumara em
vida um casamento infeliz, sem filhos, sem perspectiva. A esposa nunca fizera
muita questão de esconder a indiferença e o descaso.
E decorria daí uma vantagem magnífica que a morte agora lhe propiciava.
Estava livre, livre, sem ninguém mais a quem
prestar contas, Casara depois dos quarenta, ela aos vinte e dois. Ele, Aleixo
escolado, experiente das coisas da vida; ela Teresa neófita, mas desejosa de
tudo aprender o quanto antes.
Quando ia
pegá-Ia na faculdade, invariavelmente a via
com rapazes da idade dela, do desejo dela. E
a relação logo congelara, sem papo cabeça
que aguentasse. Achava ele, ao contrário, que os casamentos do mundo viraram a
desandar quando apareceu o maldito papo cabeça. Quando um dos cônjuges afirma
"ser necessário discutir a relação",
pode-se já preparar os papéis do divórcio.
Mas, apesar
de livre, o Aleixo etéreo ainda quer rever a
casa, a mulher, ou melhor, a viuva, Teresa lampeira bem fresca e posuda, para
alegria dos homens. Procura dirigir-se de novo ao lar, que não foi doce nem
lar. Afinal, o caminho não é longo, ele o conhece e não mais se cansa. Transpõe
de um modo novo e volátil as grades de ferro. As pessoas na rua passam
indiferentes, conhecidas até, que tenta cumprimentar, sem conseguir.
Agora não
sente frio nem calor. Vê que as folhas se mexem na claridade lúgubre do
crepúsculo, porém não sente o vento. E chega
afinal à casa fechada, as luzes acesas lá
dentro. Num ato instintivo bate à porta e não escuta qualquer som. Quando dá
por si, sem saber como, já se encontra dentro. Está na cozinha, na velha
cozinha onde se esmerava em lhe fazer os mais doces e amorosos quitutes, pois ela nunca quisera ser de fomo e fogão. A
torneira da pia ainda pinga, um irritante e
monótono estrago nunca
consertado.
consertado.
Sente-se
parte do universo. Não domina por certo a
nova força, mas sem se dar conta vai até o armário da cozinha e abre exatamente
aquela porta, exatamente aquela. Não abriu
com a mão, pois isso não mais funciona. Abriu de outro modo, fantasmagórico, irreal. Sabia que precisava abrir bem ali, sem
tentativa nem erro. E deu com um vidrinho de
pó branco pela metade. Sem rótulo, sem
indicação. No entanto, ele sabia com certeza que era arsênico, pois seu novo estado lhe propiciava esta verdade. E compreendeu finalmente os estranhos suores e
tremores, entremeados de dor, que sentia depois de cada refeição, de cada
refresco.
Teresa
maldita era a responsável. Estava certo disso também, não se fazia necessário
investigar. Mas, a quem recorrer? Haveria
alguma polícia no irreal, um judiciário no
éter, nesta estranha dimensão que agora habitava?
Fora ela o caminho para a morte dolorida e desejada, tamanho o sofrimento.
Ah, por todos os esconjuros, um dia ela viria até ele. Esperaria. Talvez até lá, já
tivesse resolvido o que fazer, quiçá matá-Ia de novo.
Ouve ruídos na sala. Maravilha-se com o que escuta, pois até ali o silêncio parecia
eterno. Desliza na porta e a vê, Teresa pérfida, aos beijos no sofá de sempre com um
desconhecido de corpo sarado. O mesmo sofá que o abrigava quando ela decidia
dormir sozinha no quarto. Beijos de língua, apaixonados, plenos de entrega.
Aleixo incorpóreo desespera. Tenta chamar a atenção,
procura pegar algum objeto.
Impossível. E
continuam eles o já não adúltero beijo. Levantam-se e, agarrados, lascivos, caminham para o
quarto com passos trôpegos, desencontrados.
Teresa mofina não sentiu luto nem saudade.
Volta à calma e
compreende afinal que a cena é antiga. Fora
enganado em vida, como se via trai do na morte. Não vai ao quarto.
Não quer ver o que já sabe que deve acontecer.
Retoma ao seu ambiente,
pois nada há que fazer. Tentará em vão esquecer os senões da vida abjeta que
vivera.
Passa sem problemas pelo portão cerrado de seu novo
endereço. Espera dominar a sua fluidez para
se vingar da Teresa assassina, nem que espere a eternidade, que agora para ele
não mais conta. Está vazio de tempo e espaço.
Aleixo intangível vai se perdendo junto à lápide, sem lamentação. Mas percebe com
mórbida e estranha alegria que continua sentindo ódio. E retoma ao nada, logo abaixo da
superfície.
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